sábado, 27 de dezembro de 2008

Cena l

E de repente eu entendi que o começo, o meio e o fim são o encontro.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Aliteração

Meu verso passou a trabalhar em casa
virou-se em si
desvirou-se psy

Contraiu síndrome do pânico

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

A dêixis e a aranha

Governar é conduzir condutas: (...) a ironia é que nós acreditamos (...) que estamos livremente escolhendo nossa liberdade.” (Nikolas Rose)

Ele considerava-se uma pessoa boa. Tinha o pavio meio curto, mas, afinal, ninguém é perfeito! E também não se deve ter sangue de barata. Admitia, contudo, certos exageros, e já havia se transformado bastante. Estava muito mais sociável, tolerante. Tinha suas lembranças, infinitamente suas, das broncas do padre, das suspensões no colégio, das chineladas dos pais, da submissão da mãe.
Um dia, percebeu o outro. Resolveu, então, relatar-lhe seu dia, porque percebeu também o dia e que relatá-lo aprimorava sua percepção, e que a percepção sublimava a sensação de que todos os dias eram iguais. Começou falando sobre sua ida à padaria. Lá, segundo ele, perguntou o preço do pão e lá ele disse que custava caro. Mesmo assim, vendeu-lhe. Ele comprou. Após a troca, ingeriu parte daquilo e dirigiu-se à sua entrevista de emprego. Dinâmica de grupo! Nunca se dera bem em dinâmicas de grupo! Passou, entretanto, nesta. Estava mesmo melhorando. Foi trabalhar em casa como operador de telemarketing. Apesar de não ter entendido direito a razão da dinâmica, entendeu que ela lhe fora positiva e que o fato de não ter que pegar ônibus era mais positivo ainda. Resolveu dar uma volta no quarteirão, agora que tinha mais tempo, porque precisava emagrecer, estava acima da média. Também precisava ler, estava abaixo. Providenciaria um livro bem fino no dia seguinte. Por ora, ficaria com a televisão. “É preciso dar um basta à intolerância religiosa, porque todos os caminhos levam a Deus”, dizia o outro na TV. Intolerância é mesmo um atraso, pensou. Um outro da TV dizia verdades sobre as quais ele, acima de tudo, admirava-se. Emocionou-se com o relato que assistia sobre Sísifo, Ícaro e Prometeu. Mas, mediante seu sono, eles fundiram-se e fenderam-se, provocando um sonho esquecido no momento do despertar. Achou um livro fino enquanto deixava-se estar na sala. Achou tosco um personagem de nome Gurdulu, que ora achava que era a sopa que comia, ora achava que era a pedra com que lidava... Assistiu a Sessão da Tarde: “A coisa”, há tempos não passava esse filme. Lembrou-se de que tinha que sair à noite, já estava em casa há uma semana. É preciso viver também!! Convidou, segundo ele, outro para lhe acompanhar. O outro apareceu enquanto ele se arrumava. Então estancou aterrorizado diante de um espelho que se desmanchava. Um outro fundira-se num eu fragmentado. O outro era ele. Estavam ambos assistindo-se.
Diferentemente da novela de Kafka, fundidos e fendidos, eles não se perceberam transformados, mas eram uma cotidiana e contundente aranha.