quarta-feira, 14 de março de 2007

O ensaio, o anseio, o anseio

Antes de nascer eu ensaiava
Meu ensaio continha olhos e ouvidos
Nasci mudo
Nasci no mundo
E chorei
Papai batizou-me:
_ Filho
Anseio...
A luminária acendeu um monte
e ele moveu-se de lugar
_ Anseio

De novo

A moça do trem resolveu não ler nada desta vez. Queria de volta o que havia perdido. Queria voltar. O trem era fétido. As pessoas fétidas. Os trilhos tédio. Milhares de olhos nada viam, e ela ali, simplesmente ali. Já não tinha, era vazio. Olhou na janela e não viu o sublime, só formas empoladas querendo vida. Parecia que o mundo tinha se perdido com ela. Chovia. Os homens mascavam chicletes. Os homens olhavam bundas elevadas de espírito. Lá fora o sublime. Fecharam os vidros porque lá fora molhava o trem.
A moça do trem escarrou no chão de madeira, os homens olharam. Havia um pedaço de pau carregado de sentimentos escorrendo por suas frestas. Alguém sentiu enjôo. Então o sentimento sugou o chão, um chão puro, um chão distraído, um chão caro e escasso como os que vimos quando sentíamos.

terça-feira, 13 de março de 2007

Trilogia

Ebenézer

O menino brincava e seu brinquedo caiu-lhe nas mãos, perfurou-as. Olhou o céu roseado, olhou uma árvore florida. O gosto da árvore tocou sua língua; como olhar as árvores e não sentir o gosto? O menino não estava no Éden, o cheiro de desinfetante vindo da casa dava-lhe a certeza. Inspirava, espirava. O menino inspirava e expirava. Ouviu um barulho no portão, teve certeza, correu para os braços do pai, que o abraçou e abraçou; um pai grande e forte o abraçou e viu suas mãos sangrando. O pai grande e forte ficou sensibilizado com o menino, beijou-lhe a testa. O menino finalmente sentiu o mundo, quase podia entendê-lo. O menino inspirava e espirava, inspirava inspirava, esperava...



Palheta

Pôr do sol...
Pôr da lua...
Pôr dos pensamentos...
A vida se põe sobre as árvores,
Dentro das árvores, nela mesma,
O homem não canta a vida
Nem vive seu sol, lua e pensamentos,
A vida vive o homem,
Ele vive o sonho...
O menino brinca no escorregador,
Não olha o espelho.
A imagem lá no céu
Presenteia com o infinito,
O menino brinca na balança,
Ouve o sopro dos discos,
Gaitas bagunçam cabelos.
Orvalho mancha o jeans já desbotado,
O menino brinca na gangorra,
É uma gaivota!
Desce a brisa
Salgando-lhe os lábios,
Adoçando-lhe o olfato...
O menino brinca de vida,
A vida brinca de menino.



Os meninos

Maria era, não a virgem, teve nove filhos e alguns orgasmos. Quatro eram meninos, três meninos, e dois meninos. Era o que ela via na fotografia. Dentre eles, um homem, um homem ela via, um apenas havia, a via.
Ela via o retrato, olhos distantes, sua alma inundada de cânceres.
Jamais vi olhos tão distantes, uma distância que devorava o céu, ela comia terra e tomava água. Eram seis e meia de um outono qualquer, e um despertador a fazia lançar-se inexprimivelmente às margens de um passado inexorável.
Esvaía-se de digressões, lançava-as no lixo consigo mesma, o retrato.
Tudo é casualmente acidental, ela debruçou-se sobre mim e chorou perdida e distantemente como jamais vi, como jamais vi...